“Julgas que não grito? E que não sofro? Julgas que não choro? Que não atiro a mochila para o chão?! Sofro horrores. Mas se ficar na cama morro. E porque hei de eu morrer se não fiz nada de mal? Para quê morrer se a única coisa que fiz foi amar?”
Caminhou durante 45 dias, esta peregrina que encontrámos quase no final da jornada. Ela anda, anda obstinadamente de manhã à noite e assim o fez até que a dor intensa se cansou de a acompanhar. Nesse dia parou, falou sobre o passado e, dois dias depois, voltou para casa.
Já lá estive, num lugar muito parecido com esse, mas não me deu para andar. Queria ter-me metido numa concha, tão pequena que nem eu própria lá conseguiria entrar, quanto mais sair. E enquanto a oiço vêm-me à cabeça todas as dores, as minhas e não só, que assim me foram acompanhando nos últimos dois dias de peregrinação. É extraordinário como alguns sentimentos que nos parecem intransponíveis acabam por se encaixar harmoniosamente no passado, como uma memória lisa. São os aparentemente irrelevantes que permanecem e nos formam.
Estávamos em 1979 e era preciso apanhar um transporte, de modo que sair de Lisboa a caminho do Algarve, Cascais ou da Amadora, era para nós como ir de viagem. A minha memória, que talvez me esteja a omitir factos, diz que este terá sido o primeiro contacto com os meus avós desde que saímos de África. Nós de Angola, eles de Moçambique.
A Amadora estava repleta de baldios. Poderia dizer que o meu avô Virgílio recomeçou aqui a vida a partir do zero mas não seria uma descrição justa. Ele, a minha avó Amélia e a minha tia Cristina, recomeçaram aqui a vida, a partir de um caminho completamente quebrado. Algum tempo depois mudaram-se para uma zona residencial em Queluz. Foi emocionante o dia em que finalmente nos deixaram começar a fazer sozinhos esse percurso entre a nossa e a casa deles. Haveríamos de lá voltar muitas vezes, para estar com os avós que “trocaram de papéis”. A nossa avó a trabalhar fora pela primeira vez na vida e o nosso avô a ensinar-me os caminhos pela praça e pelas ruas de Queluz. Achava piada ao nosso sarcasmo de jovens, uma marca familiar que reconhecia. Das suas dores, fui aprendendo pela dignidade do que não dizia e do quanto me contavam sobre ele. Foi digna a vida que reconstruiram e havia muito amor naquela casa. Estes avós e a avó materna ensinaram-me, pelo exemplo, que não há idade para se recomeçar.
A nossa verdadeira história, a que nos define, começa a partir de infelicidades, mudanças, momentos mais ou menos dramáticos. E a coragem, ou até mesmo a alegria, com que os enfrentamos determina o que se segue. Não sendo uma família de sofredores, quase todos os “dramas” acabam em paródia e o “um dia irás rir-te disto” acaba sempre por chegar, por vezes mesmo durante o processo. Não há nada de que não possamos fazer humor.
A cada vez que abrimos novos caminhos, por iniciativa própria, estamos a criar micro explosões controladas para vias que também nos passam a pertencer. As angústias da “liberdade de escolha” são para quem não se conhece. Os caminhos que ficaram para trás podem trazer-me nostalgia mas não arrependimento. Uma professora acusava-me de algum elitismo — “elitismo intelectual”, dizia ela — e, embora eu não o consiga reconhecer (até porque se assim fosse provavelmente teria de me descartar) o que procuro nas pessoas a quem me ligo é a densidade emocional. Pessoas complexas são interessantes de maneira que me cativam. Se é pelas fragilidades que nos ligamos uns aos outros, pois a minha estrada está repleta de pessoas partidas e refeitas, com quem tenho aprendido imenso. Porque haveria de me querer ligar a pessoas que não se querem conhecer, optando por levar vidas vazias, restritas ao seu mundo, vivendo e contando exclusivamente rotinas?
A história do meu pai fez-se também de caminhos cortados, de casas desmanchadas, queimadas, bens perdidos e distâncias demasiado longas. Tal como a da minha mãe, dos meus irmãos. Tal como a minha.
Volto aos professores, desta vez de psicologia, que por (eu) não conseguir dizer a frase “aqui vou ser feliz” com um mega sorriso, me dizia que isso se devia a que seria uma pessoa tendencialmente triste. Trago algumas tristezas que estimo muito, mais, que faço questão de não tratar — ninguém se deveria querer curar tanto ao ponto de não se reconhecer — pois o que privilegio é a verdade dos conteúdos, de modo que não seria um sorriso que daria verdade a um mau guião. Não há felicidade absoluta, o que existe é a satisfação de saber que estamos onde devemos estar, de resto, todas as vidas são dolorosas, mas algumas são bem vividas.
Fizemos um pequeno percurso de cento e tal quilómetros, durante um dos confinamentos moderados, e enquanto seguimos “a seta” que nos acompanha todo o Caminho Português de Santiago, não sentimos outras preocupações. Só há um sentido possível para chegar ao destino e, cumprindo isso, nada mais importa. De modo que qualquer preocupação com o futuro está, por agora, posta de lado. Ao longo do dia sou inundada por vários pensamentos, o cérebro não desliga, mas todos os estados de espírito são agradáveis, quentes e inspiradores. Os dias intensos e as noites reparadoras, e dei por mim a sentir na pele como a peregrinação pode ser um caminho viciante. Será que poderia viver assim? Tentei várias vezes colocar lógica e estratégia nesse rumo, enquanto andava. Tracei planos, ouvi podcasts, músicas em repeat e voltava a esse pensamento de abandono de tudo. Mas a casa, aquilo a que chamamos casa, apesar dos constrangimentos que estamos a viver, chama muito forte.
Deixámos de saber do meu pai, foi para Paris e depois Amesterdão. Terá sido durante um ano, dois, não sei dizer. Provavelmente já terei feito esta pergunta à minha mãe, mas deve ter sido durante uma celebração qualquer, noite dentro, talvez embriagada, de maneira que só me lembro que foi muito tempo. Para uma criança o tempo da lonjura é eterno. Até que um dia recebemos uma visita de uma amiga dele, que nos trazia fotografias e novidades. Teríamos uns dez anos, eu e o meu irmão André, quando soubemos que a Eva nasceu em Amesterdão. A companheira do meu pai era americana e ele estava com uma barba comprida. Na fotografia, o nosso pai tinha a Eva no colo. Mais tarde iriam para o Algarve onde nasceram mais dois irmãos dessa relação. São os meus irmãos mais novos que vivem a seis horas de distancia na escala fuso horário.
Somos muitos. Quando uma vida se desmancha não estamos sozinhos. Não, se não o quisermos. Por isso se estima a família, os amigos, se cuida do amor, se diversificam os interesses. Por isso e muito mais. Aqui, mais não é menos.
Apesar das medidas mais restritivas em Espanha, como o uso permanente da máscara, quase todo o percurso se faz fora da estrada, pelo campo, montanhas, aldeias e povoados, de modo que nesses dias estávamos livres do que se passava no Mundo. E éramos quase únicas, pois que a pandemia afastou todos os outros peregrinos. A Mariana entra nas bodegas acordando toda a gente. Das canecas de vinho verde levantam-se cabeças adormecidas que lhe respondem em bando:
– Buenas!
E não fora termos quilómetros pela frente, ficaríamos em qualquer um daqueles lugares, pois a conversa que ela começa ninguém quer terminar. Partimos, rimos um pouco mais do riso que provocámos lá dentro e voltamos aos nossos pensamentos. É incrivelmente regenerador o poder da caminhada.
Passaram uns meses da peregrinação. Estamos uma vez mais semifechados em casa, um ano depois do início da pandemia. Num ano que parece querer prolongar-se e que passa lentamente para nós humanos. Mas, olhando para trás, nada ficou imóvel. Reconstrui-me, mudei de casa e de bairro, vivi experiências incríveis e o mundo não parou de girar.
Artigo originalmente escrito para a Revista Bica 13